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Desaprender o tradicional para compreender o Ágil
  • 6 de junho de 2023
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Desaprender o tradicional para compreender o Ágil

Por que é tão difícil entendermos e nos entendermos com relação ao Ágil? Essa pergunta ecoa nos corredores do setor da tecnologia, em que temos disseminadas as metodologias ágeis para fazer gestão do trabalho. Percebo que encontramos muita dificuldade em aplicá-las de forma satisfatória, extraindo de fato o que elas têm a nos oferecer.

Acredito que muito dessa dificuldade vem do nosso insucesso em nos desvencilharmos da aplicação indiscriminada e inconsciente de métodos tradicionais para fazer a gestão do trabalho intelectual, e que a solução para este problema passe necessariamente pela desaprendizagem ativa desses métodos antigos como forma exclusiva de gerenciar o trabalho – pois eles não se aplicam ao trabalho intelectual -, abrindo espaço para sua integração com os novos. Acredito que este fenômeno possa ser explicado pela história do trabalho e como ele vem evoluindo.

Este texto não foi criado com rigor acadêmico, tampouco foi baseado em pesquisa estruturada. Seu intuito é apresentar ideias e propor reflexões, com base na minha experiência profissional de mais de 20 anos na indústria de software e nos diversos livros que li sobre os temas tangentes à discussão.

 

Uma história sobre o trabalho humano

Estima-se que nossa espécie tenha surgido na Terra há cerca de dez mil anos, e que humanos de uma forma geral já habitariam a Terra há mais de cinquenta mil. Nossa capacidade cognitiva diferenciada em comparação com os outros animais nos permitia imaginar. Extrapolando o concreto do “aqui e agora”, esta capacidade nos permitia visualizar o abstrato, ou seja, o que “poderia ser”.

Por falta de referências prévias sistematizadas e dissemináveis entre os indivíduos, a seleção natural encarregou-se de privilegiar aqueles com melhor aptidão para aprender fazendo, como requisito para sobrevivência. Desta forma, o empirismo perpetuou-se no coração da experiência humana.

Milhares de anos depois, após o ser humano conquistar e ocupar os 5 continentes e se organizar em sociedades, sua capacidade de “aprender fazendo” o levou a atingir altos graus de especialização do trabalho manual. Ele aproveitou esta competência para alavancar o seu sustento.

Éramos artesãos, produzindo produtos manufaturados, passando o conhecimento de geração para geração e atingindo a proficiência através da prática, como fomos projetados para fazer. Fruto da criatividade e capacidade de aprender, o trabalho humano era arte.

O ser humano continuou evoluindo seus métodos por mais alguns milhares de anos, enquanto o crescimento populacional tornava o mundo tão complexo quanto jamais fora visto. No final do século XVIII, os problemas emergentes e a capacidade de imaginar e aprender fazendo o levou a dar início a um processo que permitiria que a capacidade de produção individual fosse multiplicada. Os artesãos passaram a trabalhar em fábricas. Essa foi a revolução industrial, que deu início a uma era de desenvolvimento de teorias e métodos técnicos, produtivos e gerenciais para gestão do trabalho em massa.

 

Taylorismo

No final do século XIX, Frederick Taylor sacramentou os conhecimentos avançados para gestão do trabalho — que já haviam resistido à ação do tempo — em um movimento conhecido como Gestão Científica. Era um tempo de altíssima produtividade, eficiência e previsibilidade para os negócios, em que alguns poucos seres pensantes concebiam e ditavam regras rígidas para dezenas de milhares de trabalhadores manuais em cada empresa.

O trabalho individual era manual, repetitivo, visível e previsível, de forma que podia ser projetado por um indivíduo e reproduzido por milhares de outros. A Gestão Científica fazia e faz sentido para o trabalho individual não intelectual, pois ele pode facilmente ser estimado em unidades de tempo e gerenciado em massa de forma eficiente e eficaz, permitindo planejamento preciso e resultados previsíveis, absolutos e concretos. Isto é, basicamente, a essência dos processos produtivos, que permeou profundamente a evolução dos métodos tradicionais de gestão do trabalho e administração de empresas de uma forma geral.

 

A era do conhecimento

Já em 1950, a complexidade crescente do mundo levava ao surgimento de novos problemas, muitos dos quais continuam a permear nossas vidas. A imaginação dos poucos seres pensantes não era mais suficiente para endereçar todas as demandas e o pensar passou a ser o trabalho de mais pessoas dentro das empresas. Surgia, assim, um novo tipo de trabalho humano em massa: o trabalho intelectual, que não é previsível, nem repetitivo, nem facilmente visível, embora ainda seja manual.

Na medida em que este tipo de trabalho era adotado, o repertório da visão da Gestão Científica, sedimentada por centenas de anos, lutava para administrar este tipo laboral inédito, pois não tinha recursos e pressupostos que se mostrassem efetivos para converter planejamento em resultados. Entre 1950 e 2000, as empresas acertaram e erraram neste novo cenário, formando uma massa crítica para o que viria a seguir.

 

O trabalho como arte. De novo.

Como trabalhadores da era do conhecimento, somos, novamente, artesãos. Nosso trabalho manual e individual agora resulta em construtos criativos, fruto do labor intelectual.

Em inúmeras funções e segmentos de mercado, não há sequer um dia em que se produza exatamente o que se produziu no dia anterior — o que é muito visível no desenvolvimento de software, produção de texto, planejamento de projetos, gestão de pessoas.

Nestes casos, a criação de soluções para problemas inéditos é responsabilidade de cada indivíduo. Tanto que uma das competências mais valorizadas atualmente para contratação de profissionais é a de resolver problemas.

Como espécie, quando começamos com o trabalho intelectual, não o fizemos a partir de referências sistematizadas e dissemináveis, pois elas não existiam. Nós aprendemos a fazer o trabalho intelectual fazendo, pois aprender desta forma nunca foi um problema para nossa espécie.

Ainda assim, algo soava e soa errado. Os projetos de software executados entre 1950 e 2000 tiveram taxa de insucesso expressiva. Usado como metodologia para projetos de software principalmente a partir de 1970, o rígido Waterfall — herança inequívoca da Gestão Científica — não é compatível com a natureza do trabalho intelectual coletivo.

Da mesma forma, empresas de outros setores encontram até hoje muita dificuldade para administrar o trabalho intelectual com a mesma concretude e previsibilidade que administra processos produtivos — trabalho previsível e repetitivo. Esta tentativa, além disso, frequentemente resulta em custos socioemocionais para colaboradores e custos materiais desnecessários para as empresas, causados por atrasos e insucesso em projetos, entre outras razões.

Acontece que a Gestão Científica, sedimentada no meio empresarial por centenas de anos, permeia profundamente todos os segmentos de mercado, setores e níveis organizacionais — principalmente fora do âmbito de processos —, pois são passados de geração para geração e a tendência natural é a sua perpetuação.

 

Apreendendo a desaprender

Se o pensamento tradicional de gestão do trabalho — a Gestão Científica — não se aplica de forma eficaz ao trabalho intelectual coletivo, a solução é evidente: desaprendê-lo como forma exclusiva para gerenciar o labor intelectual e criativo, dando espaço para algo diferente.

Precisamos aprender novas formas de gerenciar para abranger este tipo de produção. Esta ideia vai ao encontro da conclusão que chegaram influentes pensadores da nossa indústria em 2001, logo antes de escreverem o Manifesto Ágil.

No seu livro “Clean Agile” (2020), Robert C. Martin — um dos criadores do manifesto Ágil — relata que, no ano de 2001, após alguns dias debatendo com colegas formadores de opinião na indústria de software, eles chegaram ao modelo filosófico para gestão do trabalho de desenvolvimento de software que hoje é muito conhecido — o Ágil ou Agile — e que é baseado nos seguintes princípios:

  • Indivíduos e interações, mais que processos e ferramentas;
  • Software funcionando, mais que documentação compreensiva;
  • Colaboração com o cliente, mais que negociação de contratos;
  • Responder a mudanças, mais que seguir um plano.

 

Itens do Manifesto Ágil escritos em papel

 

Ele sugere no livro que o Ágil “teria efetivamente começado há mais de cinquenta mil anos, quando humanos decidiram colaborar buscando objetivos comuns”. Ele acrescenta que “a ideia de escolher objetivos intermediários pequenos e medir o progresso ao final de cada um é simplesmente muito intuitivo, muito humano, para ser considerado algum tipo de revolução”.

Os “métodos ágeis”, que têm na sua raiz a premissa da adaptação, causam fascínio, e não é à toa. Somos programados para nos adaptarmos, para aprendermos fazendo, há dezenas de milhares de anos. Por esta razão soa tão natural, tão intuitivo, tão empolgante!

Na minha interpretação, a mentalidade ágil, como proposta em 2001, incita-nos a pararmos de tentar administrar um tipo de trabalho não tradicional do jeito tradicional. Pelo menos até que aprendamos o suficiente para criar uma sofisticação que mescle o tradicional ao novo.

Esta mentalidade propõe, portanto, o entendimento de que estamos apenas no início de uma era do artesanato intelectual e que devemos começar pequeno, como começamos um dia, e quem sabe em dezenas de anos aprendamos a gerenciar isso em escala, quando tivermos bases mais sólidas.

Após mais de 20 anos trabalhando em projetos de desenvolvimento de software, vi bastante mudança na nossa indústria. Meu início de carreira foi regado a CMM (Capability Maturity Model: uma forma rígida para gestão da qualidade em projetos de software), em uma época em que o manifesto ágil ainda era disseminado e assimilado.

Ao mesmo tempo em que a prática dos “métodos ágeis” em treinamentos era extremamente empolgante, sua execução no ambiente de trabalho era assustadoramente frustrante. Percebi o surgimento de diversos teóricos e simplistas, advogando com argumentos superficiais ou passionais totalmente alheios a contexto. Percebi a multiplicação de indivíduos e grupos céticos, resistindo a um processo que exigia um grande esforço de assimilação e, principalmente, de mudança de mentalidade.

 

Minha primeira experiência com o ágil

Eu era jovem e, sem saber, da turma dos simplistas. Era meu início de carreira. Causei muita frustração nos meus primeiros liderados quando tentei introduzir a prática sem sequer buscar sofrer com eles os problemas que eu estava criando. Parecia tão simples e intuitivo, mas não entendia por que não dava certo.

Percebi que os mais novos normalmente tinham mais facilidade para assimilar, mas não entendia por quê. E, conforme aprendíamos a prática em doses homeopáticas, tanto eu quanto a empresa contaminávamos o fluxo de trabalho com elementos tradicionais de controle que eram mais facilmente compreendidos pela gestão, como estimativas de tarefas em unidades de tempo e o entendimento equivocado de que o trabalho era necessariamente previsível tanto em resultado como em forma.

Invariavelmente, voltávamos ao tradicional após algumas semanas. Por que algo tão fascinante era tão difícil de implementar? Por que os mais novos tinham mais facilidade? Por que havia tanta resistência por parte dos que já dominavam seu fluxo de trabalho?

Essas são perguntas que carreguei comigo por anos, devido à minha natureza inquieta e inconformada.

 

A dificuldade de assimilação e resistência a mudanças

Entender a razão da mentalidade ágil é mais simples do que parece. Ela é sobre desaprender, para podemos reaprender. Simples assim. Desaprender a usar os métodos tradicionais de gestão do trabalho como forma exclusiva de gestão e principalmente perceber quando e quanto os usamos até de forma inconsciente, quase como se fosse uma “memória muscular” de um movimento motor

Se o empirismo é central na experiência humana, logo uma explicação plausível para a dificuldade de assimilação da mentalidade ágil é a nossa dificuldade de desaprendizagem de como gerir trabalho conforme a Gestão Científica, tão enraizada na nossa forma de administrar.

Por falta de domínio de um método melhor, e dada a necessidade de administrarmos o trabalho, frequentemente usamos o tradicional mesmo, que sabemos de cor e que tem extensa referência. Ou, como é natural, não temos consciência de tudo que aprendemos e simplesmente aplicamos.

Desaprender requer trazer à tona, à superfície, para ser observado. Isso requer energia, requer tempo, requer consciência, requer disciplina.

 

Estimativas: um exemplo de desaprendizagem de sucesso

Dentro da indústria de software, as empresas de ponta já desaprenderam a ideia de que estimativas em unidades de tempo são adequadas para todo trabalho. Isso não funciona bem para o trabalho intelectual e isso acontece por alguns motivos:

  • Primeiro que tempo é algo muito concreto. Estimativas são, basicamente, probabilidades e quando oferecidas em unidades de tempo tem uma tendência natural a serem igualadas a compromisso. Comprometer-se com probabilidades é aposta. E nenhum negócio “são” escolheria conscientemente depender do trabalho de times que fazem apostas sobre suas entregas.
  • Segundo, tempo é muito absoluto. Somos péssimos em estimar o tamanho absoluto das coisas, mas somos excepcionais em fazer comparações. Observe a estimativa de extensão territorial de países como Brasil, Estados Unidos, Argentina e México. Faça o exercício. Qual o território em quilômetros quadrados dos Estados Unidos? E da Argentina?

E se ao invés disso, eu informar que território do Brasil tem cerca de 8,5 milhões de quilômetros quadrados? Observe o mapa do mundo e rapidamente perceba que a Argentina tem mais ou menos um terço do tamanho do Brasil e que o México parece ser menor que Argentina em uma proporção mais ou menos de 2/3. Os Estados Unidos parecem ter tamanho semelhante ao Brasil, mas deve ser ligeiramente maior quando considerarmos o Alasca: vamos considerar 10% maior, só porque 20% parece muito e 0% não soa fazer sentido.

Veja os números reais (em milhões de quilômetros quadrados) e compare com as percepções: o Brasil tem 8,5, a Argentina tem 2,8 (estimamos em 1/3 do Brasil, o que daria 2,83), o México tem cerca de 2 (estimamos em 2/3 da Argentina, o que daria 1,86), e os Estados Unidos tem 9,8 (estimamos ser 10% maior que o Brasil, o que daria 9,35). Ainda que sejam naturalmente imprecisas, as estimativas por comparação de tamanho são assustadoramente consistentes em comparação com estimativas absolutas.

  • Terceiro, tempo é muito preciso. Estimativas são imprecisas por natureza, pois não somos capazes de predizer, controlar ou mesmo compreender os fatores que nos atrasam ou nos aceleram na execução de uma atividade intelectual. Deve ser adotado um grau de sofisticação para expressar coisas imprecisas em unidades precisas.

Os negócios, sim, funcionam baseados em coisas concretas, absolutas e precisas como restrições de tempo e recursos e é exatamente por isso que estimativas precisam ser confiáveis. Para isso, devem ser tratadas como algo de natureza mais abstrata, relativa e imprecisa e apresentadas de forma a refletir uma relação racional e sofisticada com o tempo.

Uma forma é expressar as estimativas em intervalos que representem a incerteza inerente a elas. Por exemplo, posso demorar de 5 a 15 dias para finalizar uma certa tarefa inédita e bons gestores serão capazes de administrar seus prazos e restrições se intervalos confiáveis foram apresentados.

No estado da arte, as estimativas são baseadas em alguma escala e unidade abstratas de tamanho (quanto mais simples melhor, como 1, 2, 3, 4, 5, 6 ou 1, 2, 4, 8, 16, 32) que possa ser medida conforme o tempo passa. Cada pacote de trabalho é estimado em relação aos demais, mantendo consistência ao longo do tempo e eliminando vieses — e aproveitando nossas habilidades para comparar coisas.

Conforme os pacotes de trabalho são concluídos, coletam-se dados empíricos e refinam-se constantemente as previsões de conclusão. Sem pressupostos, sem vieses, sem planejamento baseado em “desejo”, sem apostas. Prevê-se o futuro baseado em dados do passado recente. Como ilustração, as empresas de ponta entendem e praticam o planejamento ágil, não como uma fase, mas como uma atividade concomitante à execução de todo o ciclo de vida do projeto, refinando recorrentemente a data de término baseado nos dados empíricos coletados. O objetivo da estimativa e do planejamento ágeis é fornecer dados confiáveis baseados nos quais os negócios possam se organizar com previsibilidade.

 

Reflexão

Os principais cursos de Liderança Ágil usam a gestão da mudança como tema chave. Eu convido todos à reflexão sobre o quanto disso não vem justamente da necessidade de desconstrução do enraizamento do rígido pensamento tradicional sobre gestão do trabalho, passado de geração a geração pelos últimos 250 anos.

Convido à reflexão sobre a observação de que as gerações mais novas têm mais facilidade de adaptação com o ágil. Será efeito do menor enraizamento do tradicional, dado o menor tempo de exposição profissional?

Quero declarar que não estou advogando contra os métodos tradicionais, mas contra sua aplicação indiscriminada e inconsciente, acreditando que em muitos cenários de negócios a combinação entre a Gestão Científica e o Ágil deva ser o mais adequado, sobretudo para gerenciar o trabalho de dezenas, centenas, milhares de trabalhadores.

Entendo que, para o trabalho intelectual, devemos ter a mentalidade de começar pequeno, de começar do zero, como fizemos há milhares de anos para produzir sapatos e roupas com as próprias mãos.

O Ágil não é um campo de disputa sobre qual framework é mais certo. Não é um palanque de debate de opiniões sobre “o que é” ou “ou que não é” Ágil. Tampouco é o Santo Graal, a relíquia perdida da gestão do trabalho. Ágil é simplesmente sobre adaptar-se ao que faz sentido no seu contexto — suspendendo pressupostos tradicionais ativamente —, pois só quem está nele pode ter informação para escolher as adaptações corretas.

Se existe algo que possa ser considerado errado em um time que busca ser Ágil, é a ausência de adaptação, é a ausência de aprender sobre o que dá certo, fazendo. Ou a insistência em algo que não dá certo, adotado só porque certos grupos de opinião advogam sobre a existência de padrões universais.

Praticamos Ágil, no melhor caso, há apenas 22 anos e soa muito cedo para estabelecermos padrões universais. Mal aprendemos a ser produtivos em times com ínfimos 9 desenvolvedores.

Comece pequeno, comece simples. Descubra o que funciona pra você. A prática nos levará a todos, novamente, à proficiência, como temos feito repetidamente há dez mil anos